quinta-feira, 24 de abril de 2008

Um Experiência de Bem-Aventurança

O dia estava muito quente e úmido. No parque havia muita gente estendida nos gramados ou sentada nos bancos, à sombra das arvores copadas; tomavam refrigerantes e arfavam, buscando um pouco de ar puro e fresco. O céu estava plúmbeo, não havia a mais ligeira brisa, e as exalações da grande cidade mecanizada enchiam o ar. No campo devia estar adorável, pois a primavera estava já em transição para o verão. Algumas arvores já deviam estar-se enchendo de folhas novas e, pelo caminho que margeava o rio largo e faiscante, já devia haver flores de todas as variedades. Nos recessos das matas devia achar-se aquele peculiar silencio em que quase se pode ouvir o nascer das coisas, e as montanhas, com seus vales profundos, deviam estar azuis e cheias de fragrâncias. Mas, aqui na cidade. . . !

A imaginação perverte o percebimento de o que é, no entanto, como nos orgulhamos de nossa imaginação e de que nosso especular. A mente especulativa, com seus pensamentos complicados, não é capaz da transformação fundamental; não é uma mente revolucionária. Vestiu-se com o que deveria ser e está seguindo o padrão de suas próprias projeções limitadas, confinantes. O que é bom não está no que deveria ser, mas na compreensão do que é. A mente tem de pôr de lado toda a imaginação e especulação para que o Real tenha existência.

Ele era moço ainda, mas chefe de família e conceituado homem de negócios. Parecia muito preocupado e atribulado, e ansioso por dizer alguma coisa.

"Há tempos ocorreu-me uma experiência verdadeiramente extraordinária , e como nunca a relatei a ninguém não sei se sou capaz de vo-la descrever com clareza ; espero que sim , pois não há ninguém mais a quem possa dirigir. Essa experiência arrebatou-me completamente o coração; entretanto , foi-se e dela só me resta a vã lembrança. Talvez possais ajudar-me a captá-la de novo . Vou relatar-vos com a possível exatidão o que foi esse estado abençoado . Tenho lido a respeito dessas coisas , mas tudo o que li não passava de vãs palavras , que só me falavam aos sentidos ; o que me aconteceu foi uma coisa fora da esfera do pensamento , da esfera da imaginação e do desejo , e eu a perdi. Rogo-vos me ajudeis a recupera-la." Calou-se por um instante , e continuou :

"Uma certa manhã despertei muito cedo; a cidade dormia ainda e seus rumores ainda não haviam começado . Senti-me impelido a sair; vesti-me ràpidamente e saí para a rua. Nem sequer o caminhão do leite havia começado a circular . A primavera estava no início e o céu era de um azul pálido. Apoderou-se de mim um forte sentimento de que devia ir ao parque , distante cerca de uma milha . Desde o instante em que transpus a porta da rua veio-me um estranho sentimento de leveza , como se estivesse caminhando no ar. O edifício fronteiro , um desgracioso conjunto de apartamentos, perdera toda a sua fealdade ; até os tijolos pareciam vivos e luminosos. Todo o objeto insignificante , que eu de ordinário não teria notado sequer , parecia dotado de uma qualidade extraordinária , peculiar e, coisa estranha , tudo parecia parte de mim mesmo. Nada estava separado de mim; com efeito , o eu", como observador , como percepiente , se tinha ausentado, se percebeis o que quero dizer. Não havia "eu" separado daquela árvore ou do jornal jogado na sarjeta ou das aves que chamavam umas às outras. Era um estado de consciência que eu nunca dantes experimentara. "

No caminho do parque", prosseguiu, "havia uma loja de flores. Centenas de vezes passei por ali e de cada vez não dava mais do que um simples relance de olhos para as flores. Mas naquela manhã parei diante da loja. A vitrine estava ligeiramente embaciada, do calor e da umidade interiores, mas isso não me impedia de ver as diversas variedades de flores. Enquanto ali estava, a contemplá-las, comecei a sorrir e rir, possuído de uma alegria nunca experimentada anteriormente. As flores estavam a falar-me e eu a falar com elas; sentia-me misturado com elas, faziam parte de mim mesmo. Ao dizer-vos isso poderei dar-vos a impressão de que me achava num estado histérico, ligeiramente privado da razão; mas não era assim. Vestira-me com muito cuidado, perfeitamente cônscio dos meus atos, escolhendo peças limpas de vestuário, consultado o relógio, vendo os letreiros das lojas, inclusive o de meu alfaiate, e lendo os títulos dos livros expostos na vitrine de uma livraria. Tudo era vivo e eu amava todas as coisas. Era o perfume daquelas flores, mas não havia "eu” a cheirar as flores, se entendeis o que quero dizer. Não havia separação entre elas e mim. Aquela loja de flores apresentava um espetáculo de cores, de uma beleza que parecia extasiante, pois o tempo e sua medida haviam cessado. Devo ter estado ali mais de vinte minutos, mas garanto-vos que não tinha noção alguma de tempo. Foi-me difícil partir de perto daquelas flores. O mundo de luta, de dor e de sofrimento era naquela hora inexistente. Com efeito, num tal estão as palavras não têm significação. As palavras são descritivas, discriminativas, comparativas, mas naquele estado não existiam palavras. "Eu" não estava experimentando; só havia um estado --- a experiência. O tempo cessara: não havia passado, presente ou futuro. Só havia --- oh! , não sei expressa-lo por palavras, mas não importa. Havia uma Presença --- não, não é esta a palavra. Era como se a Terra. Com tudo o que nela e sobre ela existe, tivesse recebido uma benção dos céus, e eu, dirigindo-me para o parque, fazia parte dela. Ao aproximar-me do parque, fiquei completamente fascinado pela beleza daquelas arvores familiares. Do amarelo pálido ao verde mais escuro, as folhas dançavam cheias de vida. Cada uma das folhas destacava-se, separadamente, e toda a riqueza da Terra se concentrava numa única folha. Senti o coração acelerar-se; tenho um coração robusto, mas mal podia respira, ao entrar no parque, e pensei desmaiar. Sentei-me num banco, as lágrimas rolavam-me pelas faces. Rodeava-me um silêncio verdadeiramente intolerável. Mas esse silêncio estava purificando todas as coisas, lavando-as da dor e do sofrimento. Ao internar-me mais no parque, havia música no ar. Fiquei surpreso, pois não havia casas nas imediações e por certo ninguém teria levado um rádio no parque àquela hora da madrugada. A música fazia parte daquela totalidade. Toda a bondade, toda a compaixão do mundo estava presente naquele parque, Deus ali estava."

"Não sou teólogo nem muito religioso", continuou, "já entrei pelo menos uma dúzia de vezes numa igreja , mas isso nunca teve muita significação para mim. Não suporto o amontoado de absurdos que se presencia numa igreja . Mas naquele parque estava presente um Ser, se pode empregar tal palavra, no qual todas as coisas viviam e agiam. A perna me tremia, forçando-me a sentar-me de novo, recostado numa arvore. O tronco era uma entidade viva como u, e eu fazia parte daquela árvore, daquele Ser, do mundo. Devo ter desmaiado. Aquilo fora excessivo para mim: as cores intensas e vivas, as folhas, as pedras, as flores, a incrível beleza de todas as coisas. E, por sobre tudo aquilo, a benção de. . . "

Quando tornei a mim já era nado o sol. Em geral levo uns vinte minutos, a pé, até o parque; mas já fazia quase duas horas que eu saíra de casa. Fisicamente, sentia-me sem forças para voltar a pé; e, assim deixei-me ficar ali, sentado, reunindo forças e sem ousar pensar. Ao voltar para casa, lentamente, levava comigo, toda inteira, aquela experiência; durou ela dois dias e, subitamente como viera, desapareceu. Começou então o meu tormento. Durante uma semana inteira não cheguei, sequer, às proximidades do meu escritório. Queria de volta aquela experiência extraordinária, viva, queria tornar a viver, e para sempre, naquele mundo beatífico. Tudo isso aconteceu há dois anos. Andei pensando seriamente em abandonar tudo e ir-me para um recanto solitário do mundo, mas o coração me dizia que não a recuperaria por essa maneira. Nenhum mosteiro pode oferecer-me aquela experiência; não a encontrarei em nenhuma igreja cheia de velas acesas e onde só oferecem a morte e a escuridão. Pensei em partir para a Índia, mas abandonei também tal idéia. Experimentei então certa droga; ela me fez vívidas as coisas, etc. , mas não é de narcóticos que eu preciso. Isso é querer comprar muito barato o "experimentar”; e o que se tem é uma ilusão e não a coisa real."

"Aqui estou , pois", concluiu. "Tudo eu daria , minha vida e todos os meus haveres , para tornar a viver naquele mundo . Que devo fazer?"

Ele veio a vós, sem o terdes chamado, senhor. Vós nunca o procurastes. Enquanto o estiverdes procurando, não o tereis nunca. Justamente o desejo de tornar a viver aquele estado extático, está impedindo a vinda do novo, a experiência nova daquela suprema felicidade. Vede o que aconteceu: tivestes aquela experiência e estais vivendo agora da lembrança morta de ontem. "O que foi" está impedindo a vinda do novo.

Quereis dizer que devo pôr de fora e esquecer tudo o que foi e ir arrastando de dia em dia esta insignificante existência, interiormente esfomeado?"

Se não continuardes a relembrar e a pedir mais --- o que constitui um verdadeiro esforço --- será então possível que aquela mesma coisa que escapa inteiramente ao vosso controle, atue por sua vontade própria. A avidez , mesmo com um alvo sublime, só pode gerar sofrimento ; a ânsia de mais abre a porta ao tempo. Aquela bem-aventurança não pode ser comprada por nenhum sacrifício, nenhuma virtude, e nenhuma droga. Ela não é uma recompensa , um resultado. Vem espontaneamente; não a busqueis.

"Mas aquela experiência foi real, veio da esfera do Sublime?"

Sempre queremos que outra pessoa confirme um fato ocorrido, nos dê certeza a respeito dele, para ficarmos abrigados nesta certeza . Tornar-se certo ou seguro em relação ao que foi, ainda que tenha sido o Real, significa fortalecer o irreal e gerar a ilusão . Trazer para o presente o que passou --- agradável ou desagradável --- é fechar a porta ao Real. A Realidade não tem continuidade. Ela existe momento por momento; é atemporal, imensurável.


Extraído do livro
Reflexões sobre a Vida de J. Krishnamurti - Editora Cultrix - 1972

Nenhum comentário: